Por que somos Anarquistas?

Por que somos Anarquistas?

As poucas linhas que seguem não constituem um programa. Elas não têm outro objetivo senão o de justificar a utilidade que haveria de elaborar um projeto de programa que seria submetido ao estudo, às observações, às críticas de todos os revolucionários comunistas.

Contudo, talvez contenham uma ou duas considerações que poderiam encontrar seu lugar no projeto que estou propondo.

Nós somos revolucionários porque queremos a justiça e porque, por toda a parte, vemos a injustiça reinar ao nosso redor. É em sentido oposto ao trabalho que são distribuídos os produtos do trabalho. O ocioso tem todos os direitos, mesmo aquele de causar a fome em seu semelhante, enquanto o trabalhador nem sempre tem o direito de morrer de fome em silêncio: ele é encarcerado quando é condenado por fazer greve. As pessoas que se dizem padres tentam fazer crer em milagre, para que as mentes sejam escravizadas; pessoas chamadas reis se dizem descendentes de um senhor universal para serem governantes de tudo a sua volta; pessoas armadas por estes ferem, golpeiam com sabres e fuzilam conforme a sua vontade; pessoas em togas pretas, que se dizem a justiça por excelência, condenam o pobre, absolvem o rico, vendem frequentemente as condenações e as absolvições; comerciantes distribuem veneno no lugar de comida, matam no varejo ao invés de matar por atacado e tornam-se assim capitalistas honrados. O saco de moedas¹, eis aí o senhor, e aquele que o possui tem em seu poder o destino dos outros homens. Tudo isso nos parece infame e queremos mudar. Contra a injustiça nós convocamos à revolução.

Todavia, “a justiça é apenas uma palavra, uma pura convenção”, nos dizem. “O que existe é o direito da força!” Está bem, se isto é assim, nós não somos por isso menos revolucionários. Duas coisas ardorosas são colocadas: ou a justiça é o ideal humano e, neste caso, nós a reivindicamos para todos; ou a força sozinha governa as sociedades e, neste caso, usaremos da força contra os nossos inimigos. Ou a liberdade dos iguais ou a lei do talião.

Mas porque se apressar, dizem-nos todos aqueles que, para desobrigar de agir por si mesmos, esperam todo o tempo. A lenta evolução das coisas lhes é suficiente, a revolução causa-lhes medo. Entre eles e nós, a história tem pronunciado. Nunca nenhum progresso, quer seja parcial ou geral, realizou-se por simples evolução pacífica; sempre se fez pela revolução repentina. Se o trabalho de preparação se opera com lentidão nos espíritos, a realização das ideias tem acontecido abruptamente: a evolução se faz no cérebro, e são os braços que fazem a revolução.

E como atuar nesta revolução que vemos se preparar lentamente na sociedade e cujo advento ajudamos por meio de todos os nossos esforços? É nos agrupando como corpos subordinados uns aos outros? É nos constituindo, como o mundo burguês que combatemos, em um conjunto hierárquico, tendo os seus senhores responsáveis e os seus subalternos irresponsáveis, tidos como instrumentos na mão de um chefe?

Começaremos por abdicar para nos tornar livres? Não, porque somos anarquistas, ou seja, homens que querem manter a plena responsabilidade de seus atos, que agem em razão de seus direitos e de seus deveres pessoais, que possibilitam a um ser o seu desenvolvimento natural, que não têm ninguém por senhor e não são senhores de ninguém.

Queremos nos libertar da opressão do Estado, não ter mais acima nós superiores que possam nos comandar, impor a sua vontade no lugar da nossa.

Nós desejamos rasgar toda lei exterior, nos atendo ao desenvolvimento consciente das leis internas de toda a nossa natureza. Suprimindo o Estado, abolimos também toda moral oficial, sabendo antecipadamente que não pode haver moralidade na obediência a leis obscuras, na obediência de práticas das quais não se procura nem mesmo dar-se conta. Existe moral apenas na liberdade. É também unicamente pela liberdade que a renovação continua a ser possível. Queremos manter o nosso espírito aberto, se prestando antecipadamente a todo progresso, a toda ideia nova, a toda iniciativa generosa.

Mas, se somos anarquistas, os inimigos de qualquer senhor, somos também comunistas internacionais, porque compreendemos que a vida é impossível sem grupamento social. Isolados, não podemos nada, ao passo que, por nossa estreita união, podemos transformar o mundo.

Associamo-nos uns aos outros como homens livres e iguais, trabalhando em uma obra comum e regulando as nossas relações mútuas pela justiça e pela benevolência recíproca. Os ódios religiosos e nacionais não podem nos separar, dado que o estudo da natureza é a nossa única religião e que temos o mundo por pátria. Quanto à grande causa das crueldades e baixezas, ela cessará de existir entre nós.

A terra se tornará propriedade coletiva, os obstáculos serão removidos e, doravante, o solo pertencente a todos poderá ser trabalhado para o agrado e o bem-estar de todos. Os produtos solicitados serão precisamente os que a terra pode melhor fornecer, e a produção responderá exatamente às necessidades, sem que jamais nada se perca como no trabalho desordenado que se faz hoje em dia. Do mesmo modo, a distribuição de todas as riquezas entre os homens será retirada do explotador privado e será feita pelo funcionamento normal de toda a sociedade.

Não temos nada que descrever por antecipação sobre o quadro da sociedade futura: é à ação espontânea de todos os homens livres que cabe criá-la e dar a sua forma, aliás incessantemente variável como todos os fenômenos da vida.

Mas o que sabemos é que qualquer injustiça, todo crime de lesa-majestade humana, nos encontrará sempre de pé para combatê-los. Enquanto perdurar a injustiça, nós, anarquistas-comunistas-internacionais, permaneceremos em estado de revolução permanente.

Nota:

  1. Le sac d’ecus: deve ser referente à moeda francesa. O primeiro écu era uma moeda de ouro (o d’or do écu) emitida em 1266 durante o reino de Luís IX. O Ecu (do latim: scutum) significa o protetor, e a moeda era assim chamada porque seu projeto incluía um protetor. A palavra é relacionada à escudo. Moedas de prata (écu d’argent) foram introduzidas também. [N.T.]

Tradução: Rui Ribeiro de Campos

Fonte: Publicação original “Pourquoi nous sommes anarchistes” (1889).

Tradução publicada em Boletim Campineiro de Geografia. v.1, n.1., 2011. Disponível para download aqui.